1 de ago. de 2009

Catadores de Sonhos


foto: Leonardo Duarte & Paulo Giandalia

Bloco 1

O primeiro bloco a ser apresentado denomina-se “Catadores de Sonho” e partiu da observação de uma exposição de fotos de mesmo nome expostas aqui, na Câmara de Cultura. As imagens que inspiraram a atividade estão disponíveis no blog Tantas Letras!.
O crescimento desordenado das cidades, juntamente com a desenfreada cultura de consumo, faz com que os resíduos humanos sejam uma problemática presente nas grandes aglomerações urbanas. Neste cenário de desordem, novas necessidades surgem não apenas na tentativa de impor um pouco de ordem ao caos, mas também na busca do indivíduo em se assumir como tal e encontrar um meio de se inserir na paisagem urbana.
A câmera capta a paisagem e os elementos que a compõem, dentre eles temos as figuras dos catadores de lixos que perambulam pelas ruas da cidade em busca de matéria, para convertê-la em moeda de troca e garantir o sustento próprio e dos seus.
A sensibilidade daqueles que os vêem permite que eles sejam enxergados e a poesia exprime com beleza aquilo que a beleza esqueceu de habitar. Nestas produções veremos a fome retratada em versos, como em “Máscara”, aspectos como injustiça social aparecem em “Catadores de Sonhos”, e sofrimento, injustiça e conformidade podem ser relacionados aos poemas “Esboço”, “Pressa” e “Testamento”.
Em meio aos aglomerados de concreto, ruas e avenidas cinzentas, é cinzenta também a figura do catador, mas não aqui. Aqui eles assumem as cores que a realidade os permite ter aos olhos de quem os vê.
Como cita Otávio Paz, em Signos em Rotação: “O árido mundo atual, o inferno circular, é o espelho do homem cerceado e sua faculdade poetizante. Fechou-se de todo contato com esses vastos territórios da realidade que se recusam à medida e à quantidade, com tudo aquilo que é qualidade pura, irredutível a gênero e espécie: a própria substância da vida”



Academia da vida

Como um cavalo negro, puro sangue,

Ele exibe as marcas
De seus músculos fortes.

Faz das ruas e avenidas, sua academia.
Dos sacos pretos carregados de sucatas,
Seus halteres de musculação.

Das calçadas cinzentas
E das ruas esburacadas, sua esteira
De caminhada e determinação.

Assim segue a rotina,
Na magia da avenida.
Faz de seu caminhar sua energia.

Exibe o corpo másculo e musculoso
Que o homem rico e vaidoso
Só faz invejar.

Não sabe o esforço,
Que o pobre valente,
Faz no dia a dia pra se sustentar.

Sueli R. S. Simão



MÁSCARA

Hei, você,
Que já esteve cara-a-cara com a cara da fome, como é que ela é?
Que tal ela é?
Assusta, apavora, devora ou nenhuma das três?
Ela existe mesmo, ou é só uma lenda uma fantasia talvez?

E você o que fez?
Tremeu, balançou, se borrou, se enganou, nem ligou, ou reagiu e saiu pra mendigar, roubar ou catar?

E então?
O que catou, ajudou piorou, melhorou, vendeu para comer, se drogar a beber?

E a pinga?
Ela ajuda a acabar com a fome, muda a sua cara, mascara, alivia, ou simplesmente vicia?

Então me diz?
Que cara ela tem, de fantasma, de lobisomem, de lobo mau, ou você não consegue definir ou nem se lembra?

E na venda?
O que te dão, uma pinga, um cigarro, uma água, um suco ou um pão?

E agora?
Que alguém te ajudou, a fome se ausentou, te deixou, foi embora de vez, ou ainda te ronda?

Essa tal fome?
Ela deixa em forma, definha, deforma, ela é legal, engorda ou é só imoral?

Afinal...
Me conta, me diz onde é que dói, ou não dói, no estômago, no peito, nas costas, no lombo, ou na sola do pé?

E a fé?
A oração, a mente, o coração, o corpo como eles estão, se nesse seu bolso não tem um tostão?

E a cara?

- Que cara?

A da fome, como é que ela é?

- Sei não!

Josefa Matos



Esboço
(Vidas em Preto e Branco)

no trapézio
pernas bambas
de crayon

avesso de
uma chegada

ponto de fuga
infinito
horizonte
deslocado

vidas que
se escoram
nas sobras

sombras
da existência

Silvio J. Pedro



Testamento

No dia que eu me for embora desse mundo
já vi que eu vou do mesmo jeito que eu cheguei
sem nada nem pra mim nem pra dar pra ninguém
só se for esse carrinho
que é que nem se fosse eu mesmo
de caçamba roda e puxador
e mais o que fazer que isso tem.
Saudade vai dar é do pessoal da rua
na hora de parar pra fumar um cigarro
e a cidade que eu já fui pra tudo que é lado
de chinelo havaiana no pé
catando garrafa latinha de alumínio
madeira de obra caixa de papelão
que é o jeito que eu tenho de ganhar essa vida.
O resto você pode fazer o que quiser
que seja o que for pra mim não tem diferença.

Júlio Versolato



Pressa

Pit stop pro almoço
Não troca os pneus
Nem as esperanças
Apenas poucas palavras

Mastiga-se poucos caroços
Não estão quente os pulmões
Nem a esperança
O tempo acabou, também as palavras

A corrida continua
Agora na contramão da história
Fazendo do nosso lixo
Sua fortuna

Ultrapassagem perigosa
Ultrapassou o limite de peso
Ultraseven
Homem de sete cavalos.

Rogério Cabeça



CATADORES DE SONHOS

Recolher os restos,
As sobras do progresso,
Migalhas da grandeza
Não foram para baixo do tapete,
Tanto incomodam agora.
E sempre, e sempre, e sempre

Roupas que outros corpos vestiram,
Sapatos de outros pés,
Cigarros de outras bocas,
Governos de países distantes
Se mostram na parede.
E sempre, e sempre, e sempre

A vida vai passando.
Vai o dia, vem a polícia.
Vai a noite, vem a fome.
Vão os carros, vem o frio.
Amanhã tudo se repete.
E sempre, e sempre, e sempre

Os sonhos, todos eles,
Vão dentro da carroça,
Que vazia está.
Sempre, sempre, sempre, sempre

Airton Mendes 05/2009



Tirar o lixo da alma

Desilusões abafadas calejadas
Por roupas seminuas e mofadas
Maltratadas pela esperança das ondas dos rádios
Calados e chapados chiando
Como peitos tuberculosos
Decreptos como a cidade que
Não os abriga, obriga
A revirar e retirar
O lixo da alma

16,6 kg de ferro = R$4,48 de feijão
3,2 kg de latinha = R$6,08 de cachaça
33,4 kg de plástico = R$9,35 de desilusão
23,0 kg de papelão é totalmente indiferente
A 23 almas tomando sopa e ganhando pão.

Rogério Cabeça



Papéis avulsos 1

A escolha certa

Numa agitada cidade de São Paulo, localiza-se meu apartamento, os quartos são arejados, confortáveis e tudo que preciso e necessito tenho ao meu alcance, mas o que me perturba é a solidão que insiste em me acompanhar nesses longos anos. Eu que sempre fui rodeada de amigos, vivi alegremente e hoje permaneço nessa vida de lamentos.
Da sacada do apartamento vejo a lua, faz dia que só tenho visto isso e deveria estar contente por poder contemplar o seu brilho, ouço os carros daqui de cima, as pessoas vão num vai e vem.
O relógio marca 20h29min, já não aguento mais essa vida... Todos os dias nessa solidão que me atormenta, isso porque dizem que a solidão é a casa das ideias, que ideias? Se ultimamente só passa na minha mente a vontade de sair e encontrar alguém para conversar, me distrair e trocar confidencias.
As horas passam, passam e os meses também e nada, só tenho vivido dessa forma.
Em um belo domingo de sol logo após o almoço ouço barulhos, que estranho! Mas o que será agora? Era só o que me faltava! Abri a porta e não vi nada, não havia ninguém. Deixei pra lá, acho que devo estar ouvindo coisas demais.
À noite enquanto jantava, ouvi novamente barulhos no hall, eram tenebrosos, parecia ter alguém andando, arrastando correntes, estava preocupada, parei de comer e fui até a porta para ver o que era, olhei, olhei novamente, mas não vi nada, então terminei de jantar.
Tranquilamente fui dormir, quer dizer, não tão tranquila assim, enquanto o sono não vinha e os pensamentos voavam na minha cabeça ouvi novamente barulhos e estes ficavam mais fortes e aumentava a cada minuto que passava. Resolvi ir novamente até a sala para verificar o que estava acontecendo e novamente ouço barulho próximo a porta, e agora o que será meu Deus, o que faço!
Aos poucos os barulhos foram diminuindo e o sono foi chegando.
No outro dia pela manhã fiquei preocupada, e agora será que estou ficando louca? Não tem nada do outro lado da porta não vejo nada demais, acho que tem alguém querendo me assustar.
Pensei em chamar um padre, talvez se um padre viesse até o apartamento poderia verificar o que ocorre e me confortar, é isso o que vou fazer. Vou ligar para ele. Mas o telefone não funciona. Estranho, como posso estar sem telefone?!
E agora o que vou fazer?
Voltei o meu olhar para a porta e percebi que havia algo embaixo da porta, achei estranho, mas fui até o local, com muito medo, conferi. Era um envelope, abri imediatamente para ver o que há dentro dele.
Tem uma chave, mas que chave é essa? Devo abrir o que com esta chave?
Preciso sair daqui o mais rápido possível. Preciso de ajuda.
No decorrer do dia das minuciosas explicações que dava sobre os barulhos e o aparecimento dessa chave, cai em um sono pesado. Dormi intensamente e sonhei. Sonhei que estava em um lugar diferente que tinha vários baús e que eu deveria abrir um baú, apenas um, deveria escolher e abri-lo.
Nossa, mas o que será que vou encontrar dentro desse baú?
De nada sabia, nem mesmo por que estava ali, sem saber o que fazer.
Ansiosa para descobrir o que estava acontecendo e escolher o baú correto, as dúvidas me perseguiam.
Acordei de repente! As perguntas iam e vinham, nada conseguia descobrir, que baú devo escolher, ninguém pode me orientar, o que essa chave deverá abrir?
Quando a ansiedade começou a me levar ao colapso, cai no sono novamente.
Ao regressar do sonho, e novamente ver os baús, deveria fazer a escolha correta, do baú e abri-lo?
As dúvidas ainda me perseguiam, o desânimo foi substituído por um entusiasmo primitivo e faziam as probabilidades de se tornar claro e transparente o que era mistério.
O que devo fazer? Escolho um dos baús? É o que devo fazer. Então farei a escolha.
Diante dos baús, fiz a escolha, a chave estava em minhas mãos e me direcionei até ele e abri, o que encontrei me deixou certamente entusiasmada com as palavras que havia escritas em um pedaço de papel: “Se deseja sair dessa eterna solidão e de seus lamentos, deverá abrir a porta do seu coração, pois há muito tempo você se fecha para as coisas boas que o mundo possa te oferecer.”
Acordei assustada e percebi que as atitudes deverão ser tomadas por mim, diante daquele sonho e de tudo que aconteceu, percebi que não adianta ficar esperando as coisas acontecerem.

Gislaine