1 de jun. de 2009

Feminino e masculino



Bloco 3

Como duas faces de uma mesma moeda, os gêneros representam dois pontos de vista distintos das relações humanas. A forma de apreensão da realidade, tão particular a cada um, produz um contraste bastante interessante a ser observado.
Por tempos, as divergências de perspectiva entre masculino e feminino têm sido o contraponto de produções artísticas, muito se fala das características especificas de cada um. Não façamos de forma diferente, dos recortes aqui retratados busquemos refletir a respeito de anseios que permeiam nossos universos particulares.
Feminino e masculino, lados que se encaixam, mas nem por isso são iguais e nem por isso se desassemelham, e neste momento de modernidade se cruzam e se descruzam numa busca por si mesmos, por suas identidades conflitantes e instáveis.





Dona Felicidade

Lá estávamos eu e ele, nós que éramos inimigos de longa data. Ele gritava a todo instante: “decifra-me ou te devoro”. Sim, era o meu cotidiano.
E eu que já não mais cabia naquelas paredes tão amareladas pelo tempo, hoje sentia- me prisioneira, daquela vida que eu havia construído. E meu cérebro traçou mais que depressa um paralelo entre minha vida e de tantas outras mulheres que foram submersas naquele universo moldado para nós.
Casar, costurar. Casar, cozinhar. Casar, procriar. Essa frase ficou amarrada em meus pensamentos durante todo o dia enquanto realiza meu trabalho.
Assim eu alimentava minhas nocivas frivolidades.
Não era conveniente que mulheres lessem isso, certamente nos levaria a pensar.
Ainda meninota, papai decidiu que eu deveria aprender a ler e escrever. Ah! Recebi aquela notícia com tamanha alegria, que mal podia conter minha ansiedade para iniciar meus estudos e desbravar todos aqueles livros.
Para minha decepção, depois de um tempo, ele julgou que eu já estava instruída o suficiente para ler os livros de cozinha, as orações e os contos morais. Sabendo mais que isso eu seria um perigo no lar, e então não fui mais à escola. Confesso que naquele momento meu desejo era de soltar os cachorros... E gritar! E gritei que queria ir além do mundo que ele idealizara para mim. Mas a quem iria interessar minhas alegrias, minhas dores, meus lamentos e meus desejos.
Aqui estou novamente prisioneira de meu cotidiano, de tantos outros desejos e idealizações masculinas. Eu, minhas paredes amarelas, meus móveis já gastos pelo tempo e meus desejos reprimidos por tantos anos. E claro não poderia esquecer ela a lagartixa, a quem persigo todos os dias com a vassoura sem obter nenhum sucesso. Mas hoje finalmente consegui acertá-la e no meio de minha loucura pensei ter a ouvido pedir por socorro. Devaneios meus...
E assim meus dias passam sem mais novidades...
A menina sonhadora foi dando lugar à dona- de- casa por vezes atarefada e impaciente.
Meu mundo são essas mesmas paredes. Mas se eu disser que não gosto daqui estaria mentindo. Eu gosto! Gosto desse silêncio que atravessa minha alma e meu coração. Faz-me pensar... Que a minha vida pode ir além de minhas costuras, minhas panelas e minhas inquietações. Há quem prefira o caos, eu fico com a calma. Há quem prefira e precise aparecer, eu prefiro e preciso me recolher.
Agora, ao olhar a vida, volto a me perguntar onde anda aquela senhora que me prometeu dias melhores?! É aquela nossa velha conhecida! Eu a tratava por Dona Felicidade. Tornou-se distante, estranha.
Será possível encontra- lá no dia-a-dia?! Será que a encontraria nas minhas caminhadas matinais, na minha casa, nos meus afazeres, ou quem sabe até mesmo salão de beleza, imersa naquela tão subversiva fraternidade feminina.
Pergunto-me onde me perdi, onde meus sonhos se perderam?!
Não era justo! Logo eu que havia seguido todos os manuais. Segui as dicas, os testes e até o horóscopo das revistas femininas. Era boa filha, boa esposa, boa mãe.
Hoje me sinto como parte integrante desse lugar, mais um objeto, velho, empoeirado.
Vejo minha família indo e voltando de seus compromissos, cheios de novidades e de vida. E assim passam por mim, passam pela velha casa, sem sequer notar que estamos envelhecendo, precisando de cuidados e de reparos. A casa, de reparos em sua já deteriorada estrutura; e eu, de reparos em minha alma.
Mas há dias felizes sim. Dias em que eu me entrego a aventuras e amores. Dias em que meu mundo torna-se muito maior. Há dias em que sou Luísa, linda, romântica, às vezes tola... Outro dia posso ser Emma, mais conhecida por Madame Bovary, ah, essa sim era sonhadora. Se eu sou como elas?! Não, isso não... Tão tolinhas, pobrezinhas. Apaixonar- me, fazer desse sentimento razão de minha existência e depositar nele toda minha felicidade?! Eu prefiro ser Dom Quixote e guerrear com os moinhos... Meus moinhos são meus gigantes da alma. Meu medo. Medo de enlouquecer nessa batalha entre eu e meu cotidiano. Minha ira. Que é alimentada pela minha ambição de deter o poder ao menos sobre minha vida. E o meu dever. Esse que entulha meu caminho com tantas obrigações para com os outros.
E agora era hora, hora de transgredir, subverter essa ordem, essa mesmice. Hora de responder a pergunta: “Decifra- me ou te devoro”?! Era hora de reencontrar a meninota que ficou tanto tempo esquecida. Era tempo de Dona Felicidade me visitar. Reaver sonhos esquecidos...
Ah sim, já era hora... Era hora do jantar. Hora de ir para o fogão. E então a mesa posta, comidinha na mesa. A família se reunirá mais uma vez para contar os acontecimentos de mais um dia. E eu... Eu mais uma vez me resignaria diante de mais um dia onde apenas sonhei e nada realizei. Então acalmei minha alma e meu coração para um novo amanhã. Mais um, para travar minha batalha com ele... Meu cotidiano.

Michele Isensee



Exame de Próstata

Os médicos alardeiam que todo homem deve fazer o exame da próstata a partir dos 45 anos. As chances de se ter um tumor é muito grande após esta idade. No entanto, o que acontece é que os homens desta faixa etária são machistas por demais. Eles não aceitam fazer o exame do toque. O mais que toleram é um exame de sangue ou no máximo, com um certo desdém, um ultra-som, por achar coisa de mulher. Mas esses tipos de exames não são eficazes como são os de toque.
Acredito que haja uma solução para este dilema, que tal se ao contrário de um médico, uma médica urologista? Ah! Seria uma correria geral aos consultórios, quem sabe não houvesse homem querendo entrar duas vezes na fila de espera?
Recentemente procurei um médico, amigo meu, o Sálvio, - essas coisas ficam mais bem resolvidas entre amigos -. Ele disse que seria preciso fazer a famosa massagem, o fatídico e infalível toque na próstata.
Marcado dia e hora, estava eu lá, de quatro sobre a maca. E ele na maior tranquilidade, vestindo a luva cirúrgica, com seu enorme dedo grosso e comprido, contando uma história mais do que imprópria para aquele momento, casado de novo, vejam só! Dizia sobre sua recente lua-de-mel em Porto Seguro. Passou uma vaselina, concentrou-se e se aproximou. Antes colocou uma toalha de papel embaixo do meu pinto.
- O que é isso, doutor? (Perguntei intrigado).
- Oh! Paulão, qualé a tua? Sou o Sálvio, não me chama de doutor, somos amigos esqueceu?
- Tá, Sálvio... Mas pra quê isso?
- Caso você goze!
- Num pulo me sentei na cama e encare-o -. Quer dizer que isso aqui é uma foda?
- Não cara! Fica calmo. Isso é normal. Não é com todos que acontece.
- Sálvio se enfiar o dedo aí e eu gozar, como é que eu fico?... Qual é a probabilidade dos que gozam?
- 50% a 60% por cento.
Tá, mas pega leve, heim!
Sálvio espalmou a mão contra a fulgurante luz hospitalar, - como a examinar se estava na espessura certa para aquele orifício -, ajustou a luva, esticou o dedo “fura-bolo” e, sereno, denotando muita paz de espírito deu início ao trabalho. Silêncio no consultório, ele escutava com muita atenção como se de lá de dentro viesse algum som. Quando toca seu celular. - Que absurdo!, celular ligado dentro do consultório. - Era sua recém-esposa pedindo informação sobre como chegar à Bela Vista saindo de sua casa, em Santana. “Oi, amor!”. Aquele “oi amor” tão expressivo e com o dedo no que era meu, e não dele, já me deu um calafrio que me arrepiou dos pés à cabeça. Começa a explicação: “Você desce a Voluntário da Pátria, quando chegar na altura da estação do Metrô, vira à esquerda... não benzinho, volta um pouco, em seguida à direita, na Cruzeiro do Sul e segue em frente... isso, em frente”. E continuou dando às referências, usando o dedo que estava sendo usado dentro de mim, como indicador de direção. Não deu outra, ejaculei.
É por essa ou por outras piores que os machões têm razões que a própria razão desconhece. - Desculpem-me a longa frase feita -, mas por via das dúvidas, é melhor ficar mesmo no exame de sangue, olhe lá no ultra-som. Se bem que o toque não é mau de todo. Mas eu continuo insistindo: por que não uma médica? Vai que... Tem aonde se agarrar e não ficar com a cara enterrada na cama, morrendo de vergonha.

Paulo Luís



Papéis avulsos 3

Anoitecer

alinhado exato ao horizonte, o homem cumpre seu diário: anoitece. está dentro do profundo, irmanado à noite. Tudo perdeu a margem. o homem chega a esquecer-se de existir. às vezes, é existido dentro na tosse que bate o corpo. a pouca existência se lhe dá no abdômen, centro frágil de sua quase falência.
a constipação bate-lhe de dentro pra fora; é na dor que ele sabe-se: eu. saber-se na dor significativa vida em potencia máxima. era na dor que sabia-se o corpo, matéria da qual este era feito.
tossia. dor. o sorriso frouxo. permitia-se, ao menos, certa alegria.
frouxo também era o sol fora, enquadrado na janela. sol tímido, vergonhoso de ser grande. sua luz, raiava direto nos olhos do homem, de modo a lhe fazer sombra. o sol, assim, mais, emudecia em sua timidez.
o homem desprezava o sol. não admitia-o, assim grande, se dispor exato e mínimo naquele buraco geométrico dentro da parede. para ele, dia e noite eram piscar de olhos.
se colocava à sombra daquela luz tosca.
- besta, pensava ele. o sol apenas baixava a vista.
gostava do vento. o ar gélido levava sua dor aos ossos.
o mundo é vasto. no entanto, cabia numa fresta retangular na parede. abra e fechava os olhos, sempre para a janela. brincava mundo-desmundo. mundo. desmundo.
mundo.
riu-se.
fazia o que quiser do mundo. bastavam dois olhos com pálpebras que lhe servissem. tinha olho e corpo. sol e vento. e para guarda-los, a janela. achava graça: mundo-desmundo. o universo lhe cabia na retina.
nada faltava. para desdistrair: vento – existia até os ossos. batia com os nós dos dedoso cálcio forte. orgulhava-se de sua rigidez esquelética. a carne-pouca era-lhe favorável. se não, talvez a incerta suportabilidade do existir.
- 33.
- (tosse)
- trinta-e três.
- (demasiado existindo)
- funções vitais comprometidas.
sai. fecha a porta. o homem fazia caretas para a porta. era ridícula: não podia ter mundo; se tivesse, estava na retina: mundo-desmundo. chamava-a ridícula, fazendo-lhe gestos obscenos. desmundava-a. mundava-a. ria. vento – “eu existo”, dizia á porta acinzentada.
estava no meio exato entre a porta e a janela. nada e mundo; porem – retinas. ria-se.
mundo. desmundo. ria-se. Desmundo. mundo. des... ria. se. Mundo-se. Ria... des... se mundo.... ria des...... mundo. se....... mundo........ ria....... vento........ des....... vento.... eu....... des...... eu...... des...... eu..........: deus.
- deus. deus. deus. (eu!)
desmundou-se por alguns segundos. a ausência do que cria deixou saudade antes mesmo de completar seu escurecer voluntário.
- o mundo é grande.
a luz do sol chovia em seu olhos. o vento, de repente, tornou-se demais. tudo era demasiado. tudo é sempre grande no corpo de um deus.
compadeceu-se do sol tímido – brilhou forte; brincou a porta – resplandeceu cinza. o vento. não o queria naquele momento. queria apenas saquear na memória o que lhe fosse o universo. mundo. mundo bem aberto. grande.
- eu sei. e isso é tudo. é o que importa.
desmundou-se numa ultima tosse, despedindo-se de seu abdômen tísico.
dissolveu-se em centro, como cabe a um deus.

ventava.

Diogo 06-2009